PROCESSOS & CRIAÇÃOES

PROCESSOS & CRIAÇÃOES

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

RESENHA DO LIVRO :"Criatividade e processos de criação" - FAYGA OSTROWER

Editora Vozes

Maria Carolina Duprat Ruggeri
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A partir da ótica de uma artista plástica, Fayga Ostrower se dirige a todos, por considerar a criatividade inerente ao Homem, inerente à vida: mais que uma visão
artística é uma visão política, histórica e filosófica.
A natureza criativa é elaborada dentro de um contexto cultural e age de acordo com as potencial idades individuais que, realizadas, configuram as particularidades
de uma época.Ela fala em processos de criação, no plural, pois essa idéia abrange os pontos
essenciais da manifestação da criatividade.
Fayga vê a criação como uma possibilidade de evitar a alienação do Homem contemporâneo.
"Criar é basicamente formar". Esta é a idéia que permeia seu pensamento.
Toda criação é algo ordenado e configurado e corresponde a uma estrutura formal.
"A atividade criativa consiste em transpor certas possibilidades latentes para o
real"e é movida pela intenção de um ser,que Faygaapresenta como "Ser consciente-sensível-cultural", com os elementos interligados por hifens, para acentuar a idéia
do todo. É na integração desses três aspectos que se baseiam os comportamentos criativos do Homem.
Enquanto muitos teóricos enfatizam o poder do inconsciente, como fator imprescindível na criação, e vêem no consciente um fator negativo e repressor,Fayga tem como premissa da criação a percepção consciente.
O inconsciente é parte fundamental do processo criativo, mas é necessário aliar o que se sabe, o que se conhece, o que se pensa e o que se imagina. "O consciente racional nunca se desliga das atividades criadoras; constitui um fator
fundamental de elaboração. Retirar o consciente da criação seria mesmo inadmissível, seria retirar uma das dimensões humanas".
As barreiras entre o consciente e o inconsciente são continuamente transpostas entre as emoções, sensações e pensamentos e, nesse limiar, atua a intuição.
A intuição, como ação de uma determinada personalidade, que permite lidar com situações novas e inesperadas, de maneira espontânea e interligada à percepção,
reformula os dados do mundo externo e interno. "Ambas, intuição e percepção,são modos de conhecimento, viasde buscar certas ordenações e certos significados".
Os processos intuitivos estão interligados ao sersensível. Parte dessa sensibilidade está conectada ao inconsciente e corresponde às nossas reações involuntárias eparte está vinculada ao consciente, podendo ser articulada e ordenada.
É a nossa percepção: "a elaboração mental das nossas sensações".
A percepção, sendo uma forma de conhecimento, apreende o mundo externo a partir de um referencial interno; ao apreender, ela interpreta. "Tudo se passa aomesmo tempo. Assim, no que se percebe, se interpreta; no que se apreende, se compreende. (...) Ganhamos um conhecimento ativo e de auto-cognição".
Ela fala da afinidade entre os processos intuitivos e perceptivos, pois na intuiçãoatuam os processosordenadores da percepção. Processosespontâneos, que envolvem
a memória, a seleção, a relação e a integração dos dados do mundo externo e interno, com o objetivo de transformá-Ios para alcançar um sentido mais completo.
Muitas vezes, essa ordenação aparece de maneira mágica, inesperada, porém pressentida: é o insight, o momento da visão intuitiva, da iluminação. Um dosprocessos mais complexos do ser humano, pois não se pode explicar racionalmente.
Mas sabe-se que é uma ação integradora, que envolve todos os aspectos: afetivos,intelectuais, emocionais, conscientes e inconscientes.
O ser consciente-sensível, ao conscientizar-se de sua existência individual,conscientiza-se de sua existência social.Ao perceber-se e interrogar-se, ele interroga o mundo externo.
O aspecto individual está interligado ao aspecto coletivo, atuando ;um sobre o outro, mas sempre levando em conta, que "todo perceber e fazer dQ indivíduorefletirá seu ordenar íntimo", sua maneira singular de ver e sentir o mundo. Daí advém a originalidade da criação: o que quer que se faça, será sempre algo que nãoexistia antes, nem existirá depois, será sempre decorrente da existência de uma determinada pessoa, em um determinado tempo e espaço.
Este ser criador, consciente e sensível é, antes de tudo, um ser cultural.
Fayga define cultura como "as formas materiais e espirituais com que os indivíduos de um grupo convivem, nas quais atuam e se comunicam e cuja expe-riênciacoletiva pode ser transmitida através de vias simbólicas para a geraçãoseguinte" .
Por mais particular que seja a atitude, existem aspectos que estão além do âmbito pessoal:valores, crenças, paradigmas, preconceitos e percepções, que podem e devem' ser revistos e questionados. Mesmo que a atitude seja de contestação, ela
se dará a partir do que está estabelecido. Ao agir, o homem interage com o mundo e pode, eventualmente, reformular a visão de mundo de sua época e criar novos rumos para a sociedade.
O processo de criação está sempre vinculado a um fazer concreto, envolve a ação, transformação e configuração de uma determinada matéria. Inicia-se uma busca formal.
A imaginação formal pensa em termos dos elementos que estruturam a linguagem visual: o movimento das linhas, as grandezas das formas, as densidades dos volumes, as gradações de luz e as relações entre as cores.
"Asformas se caracterizam por sua natureza sensorial e estão sempre vinculadas ao seu caráter material.
Fayga adota o termo "materialidade", ao invés de matéria, por ser mais abrangente, referindo-se às diversas matérias que são utilizadas nos diversos campos de trabalho, sejam eles artísticos, científicos, tecnológicos ou artesanais.
Materialidade é "tudo que está sendo formado e transformado pelo homem"."Cada materialidade abrange, de início, certas possibilidades de ação e outrastantas impossibilidades. Seas vemos como limitadoras para o curso criador, devem ser reconhecidas também como orientadoras, pois, dentro das delimitações, através delas, é que surgem sugestões para se prosseguir um trabalho e mesmo para ampliá-lo em direções novas. De fato, só na medida em que o homem admita e respeite osdeterminantes da matéria com que lida como essência de um ser, poderá o seu espírito criar asas e levantar vôo, indagar o desconhecido".
A imaginação criativa está sempre vinculada a uma matéria, é um pensar específico sobre um fazer concreto. ''A imaginação necessita identificar-se com uma materialidade. Criará em afinidade e empatia com ela, na linguagem específica de cada fazer". Desvinculada do concreto, diz respeito somente ao sujeito queimagina, não terá ressonância e nem finalidade.
"Formar importa em transformar". A matéria, ao ser configurada, seráimpregnada de um conteúdo expressivo, passará a ser uma forma simbólica,significativa, e tornará possível a comunicação.
Assim como o homem, a matéria é histórica, está vinculada a um contexto,que tem suas normas e determinados meios disponíveis.
Faygadesenvolve sua teoria amparada pela sua vivência artística e por referênciashistóricas dos diversos campos do conhecimento, o que torna possível dar forma às suas idéias.

Professora Adjunta da Faculdade de Artes Plásticas da Fundação Armando Álvares Penteado
(FAAP).caruduprat@uol.com.br
Obs.: O referido livro está indo para a segunda edição.

Movimento Total – O Corpo e a Dança

"Que a dança faça nascer, pela sutileza dos traços, pela divindade dos ímpetos, pela delicadeza das pontas paradas, essa criatura universal que não tem corpo nem rosto, mas que tem dons, e dias, e destinos".

Esse trecho do poeta francês Paul Valéry ilustra o que vai explicar o escritor português, José Gil, no nono capítulo do livro
Movimento Total – O corpo e a dança. Gil, logo no primeiro parágrafo, afirma o pensamento de Valéry em L´Ame et la Danse (A alma e a dança), ligando o movimento dançado ao pensamento. O movimento dançado, para o poeta, segundo Gil, é o movimento de todos movimentos, tendo o poder de restituir sensações e imagens provenientes de todos os órgãos sensoriais.
Valéry[2] faz dizer ao personagem Fedro que a dança era comparada a um sonho, quando este contemplava a bailarina Athikté:
“(...)sonho com a doçura, indefinidamente multiplicada por si própria, desses encontros e dessas trocas de formas virgens. Sonho com esses contatos inexprimíveis que se produzem na alma, entre tempos, entre as brancuras e os movimentos desses membros em compasso, e os acentos dessa surda sinfonia sobre a qual todas as coisas parecem estar pintadas e serem transportadas”
E faz Sócrates responder, pois para este a dança é, antes de mais nada, uma questão de ordem e simetria e não de fantasia e embriaguez:
“Mas é precisamente o contrário de um sonho!(...) Quem sabe que augustas leis sonham aqui que assumiram rostos claros e que se combinam no desígnio de manifestarem aos mortais como o real, o irreal e o inteligível se podem fundir e compor segundo os poderes das Musas?”

O poeta também “convoca” Erixímaco, que tudo conhece da dança a acrescentar uma ligeira, mas decisiva inflexão: “É bem verdade, Sócrates, que o tesouro dessas imagens é inestimável. Não crês que o pensamento dos Imortais é precisamente aquilo que vemos, e que a infinidade dessas nobres semelhanças, as conversões, as inversões, as diversões inesgotáveis que se correspondem e se deduzem diante dos nossos olhos, nos transportam para conhecimentos divinos?
A alma e a dança, do poeta frânces, na forma de um discurso filosófico, fictivo, reveste ao longo de uma satírica conversa de mesa, reflexões sobre a dança. Valéry, diz Gil, serve-se neste texto de Fedro, Sócrates e Erixímaco para dizer qualquer coisa de inexprimível em um discurso coerente e lógico: que a dança se compõe de imagens de sonho, mas que esse sonho é real, e que encarna o pensamento dos deuses. Porque não o dos homens? Questiona o escritor português, em seguida justificando que a causa é a sublimidade dos movimentos da dança e, principalmente porque tais movimentos são demasiado sutis para os humanos. Como Valéry fez dizer a Fedro:
“(...) são inexprimíveis, e todavia compõem esse tecido(essa surda sinfonia) sobre o qual todas as coisas parecem estar pintadas e serem transportadas”. Como se as qualidades, as cores e as imagens(e até os odores) nascessem dos movimentos dançados.

Mas, diz Gil, Valéry também percorre uma outra idéia, em seu texto, formulada por Sócrates, e melhor ainda por Erixímaco. Esta idéia pretende que a dança encarna nos corpos o pensamento dos deuses porque este é paradoxal e incompreensível para os homens:
“(...) a dança quer mostrar aos mortais como o real, o irreal e o inteligível se podem fundir e combinar”.

Em Erixímaco faz dizer que a dança faz-nos aceder pela vista a conhecimentos reservados aos deuses, coisa que qualquer outra arte ou qualquer outro saber é incapaz. Entre esses conhecimentos, diz que evocamos os que emanam do corpo paradoxal.
Segundo Gil, o poeta parece dizer que os movimentos dançados fazem-nos captar um sentido que nenhum discurso simplesmente conceitual poderia pensar. É como se a dança fosse mais longe, articulando o sentido e o não-sentido, fazendo-nos compreender o “real e o irreal”, as “conversões, as inversões, as diversões”, ou seja, tudo que um discurso lógico não deixaria coexistir em seu seio.
A dança, para Valéry, mostra sua “combinação”, o modo como se “deduzem” e se “fundem” em movimentos dançados. A dança encadeia movimentos incompreensíveis, paradoxais, incoerentes para os simples mortais. Movimentos que se encontram também nos movimentos comuns.

Há uma fala de Erixímaco que ilustra a idéia desses movimentos paradoxais:“(...) não somos uma fantasia organizada? E o nosso sistema vivo não é uma incoerência que funciona, e uma desordem que age? – Os acontecimentos, os desejos, as idéias, não se trocam em nós da maneira mais necessária e mais incompreensível?...que cacofonia de causas e de efeitos!(...)”
Valéry em A alma e a dança multiplica os exemplos em seus personagens e oferece à dança um caráter “misterioso” ou “obscuro”, um elemento “mágico”, “encantado”, que combina o pensamento absurdo(para a lógica humana) com o pensamento mais poderoso e mais cintilante: o pensamento paradoxal. Paradoxal porque emana e encarna em um corpo paradoxal e porque transmite um sentido paradoxal, não-sentido ou absurdo.
Valéry acredita que a dança não se limita a dar a pensar certos movimentos, impensáveis de outro modo, mas constitui uma maneira de os pensar, transforma em movimento de pensamento o que o pensamento comum do movimento comum não pode pensar e é, por isso, segundo ele, que a dança nos fornece o acesso aos “conhecimentos divinos” e é por isso que os coreógrafos têm o sentimento de pensar quando dançam.
Mas, José Gil nos diz que Valéry não constrói esse plano de imanência do movimento dançado em seu texto, nunca se desfazendo das categorias platônicas do Inteligível e do Sensível, mesmo quando pensa em uma “Grande Dança” que produziria qualquer coisa como um “corpo glorioso” que rivalizaria com a alma, em liberdade e em potência de ubiqüidade(...)
Este corpo, nas suas fulgurações de vigor, propõe um pensamento extremo: do mesmo modo que pedimos à nossa alma muitas coisas para as quais ela não é feita, e que exigimos que ela nos esclareça, que profetize e que adivinhe o futuro, intimando-a até a descobrir o Deus – assim o corpo que ali está quer atingir uma possessão inteira de si próprio, e um ponto de glória sobrenatural(...) Valéry está muito próximo da idéia de um corpo que se torna pensamento ou de um pensamento que refaz os movimentos do corpo, um corpo de pensamento... “porque o corpo sendo coisa explode em acontecimentos”, ou segundo Deleuze, é “criador de sentido”. Isso ocorre de tal modo que não é mais possível falar de “movimento”, pois os atos já não se distinguem dos membros.

A dança diz, portanto, um sentido, mas “divino”, desajeitadamente traduzido pela linguagem e pelo conceito, ao passo que se encontra por inteiro exprimido nos movimentos da bailarina. O movimento da dança é o movimento do pensamento na medida em que as suas “atitudes impossíveis” traduzem o pensamento “absurdo” que só o corpo dançante resolve. Ou seja, a dança torna legível para o olhar e para um corpo de pensamento, os movimentos incompreensíveis do corpo paradoxal.

José Gil diz que nossa visão dos movimentos dançados “impossíveis” remete para os nossos próprios movimentos paradoxais e que o paradoxo estrutura nosso corpo inteiro, constitui-o enquanto corpo que atua, que anda, que comunica, corpo inserido e orientado no espaço e segregando a um tempo.
Notas:
[1] Título do capítulo 9 do livro Movimento Total. Gil, José. pp 229 – 250.
[2] Paul Valéry. L´Ame et la Danse. Ed. Pléiade, p.159.